Morre aos 77 anos o jornalista Antonio Carvalho Mendes
' Toninho' foi responsável pela seção de falecimentos
do 'Estado' por quase cinco décadas
(Trecho de notícia retirada do site Estadão. Publicada em 15/03/11)
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Sim, este é o meu trabalho.
Escrevo sobre os mortos. Narro o que fizeram e o que pensaram. Tudo o que construíram,
quantos parentes deixaram e a data em que partiram. Só não escrevo sobre o seu
futuro, nem me atrevo a traçar perspectivas... Porque depois disso aqui, quem
saberá?
O senso comum diz que as
pessoas, depois que morrem, ficam boas. Não concordo. Acredito que os vivos,
diante de uma notícia a respeito de morte, é que ficamos bons e misericordiosos o suficiente
para enxergar a bondade que todo mundo – sabendo procurar – é capaz de possuir.
Outro dia mesmo chegou-me aqui
a notícia de um sujeito que tinha passado há pouco. Motivo apurado por mim: o
pobre levou um balaço de um esposo furioso e inconsequente, querendo acertar as
contas, porque o defunto, vivíssimo, tinha passeado com a sua mulher. Diante
disso, pode-se até pensar, concluir e dizer coisas horríveis sobre o caráter do
falecido.
Todavia, entrevista vai,
entrevista vem, chegou-me aos ouvidos a seguinte informação: a moça, antes de
conhecer o amante, vivia em depressão profunda, pensando em pular da janela,
fruto da decepção com o casamento que, em vez de lhe encher o coração de
alegria, só tinha feito transbordar o tanque de roupa e os olhos de lágrimas,
pois as noites solitárias eram longas com o marido perdido pelas farras.
Nada justifica a traição. Nada,
mais ainda, justifica o assassinato. O que minhas fontes ponderaram é que a
vítima (me refiro à morta) representava mais o papel de anjo protetor da garota
desiludida do que amante nos termos tradicionais. Ele aconselhava e a ouvia,
fortalecendo, assim, as fracas esperanças. Claro que desejava assumir um
relacionamento sério, constituir família com a pobrezinha, mas antes de tudo incentivava
que ela estivesse preparada psicologicamente e, finalmente, pudesse proceder
com as exigências dolorosas de um divórcio. O moço, em suma, tinha defeitos e
tinha um lado bom. Muito bom.
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Outro caso é este: certa vez
uma senhora, sem pressa alguma, com seus 98 anos nos deixou. Foi surpreendente telefonar
e realizar as entrevistas. Uma por uma das fontes (filhos, parentes, amigos e
até o zelador do prédio) contavam, inconsoláveis, que ela tinha partido muito
cedo desta vida, pois tinha planos ainda. Sonhava em conhecer diversos outros
países e adorava doar para abrigos os agasalhos de lã que confeccionava com a
mesma paciência com que atingiu quase um centenário vivendo neste mundo tão
tresloucado. Aquela senhora partiu, maravilhosamente, tendo garra e vontade de
viver ainda por muito tempo. E deixou esse exemplo bom para todos.
Eu adoro ouvir histórias, amo
reconstruir trajetórias. O único incômodo que encontro neste ofício tão vivo e
vibrante é pensar que, um dia, eu mesmo terei um obituário só meu. E alguém, desconhecido
(ou não?), vai escrever sobre quem fui e de que modo fui. Fico tentando
imaginar quais declarações ouvirá sobre mim e quais pessoas serão procuradas. Raiará
no fatídico dia um sol forte? Ou o céu estará chuvoso? Não sei. E este não
saber causa calafrios.
Diante do imprevisível, tenho
apenas um pedido e um capricho. O primeiro é: ao narrarem minha morte, mostrem-me
como exatamente fui, sendo fiel à minha singela história. E o segundo: que
aqueles que lerem meu obituário, um registro frio e técnico de minha morte, não
percam de vista a seguinte certeza: viver não é apenas respirar e estar ativo
neste mundo carente de sentido. Vida, minha gente, é criar e participar de
histórias. Tão singulares e tão belas que sempre valerão ser contadas. Em qualquer
tempo. Em qualquer lugar.
*este texto em
primeira pessoa não tem por intuito atribuir palavras ao saudoso e respeitável
jornalista Antonio Carvalho Mendes, nem retratar fielmente a rotina do digno e
importante ofício de se escrever obituários. O texto é uma ficção criada a
partir de um fato retratado pela mídia, atividade esta nem um pouco original. O
também saudoso escritor e médico Moacyr Scliar tinha o mesmo hábito de publicar
no jornal Folha de S. Paulo, com um brilhantismo inatingível, crônicas baseadas
em notícias.